Vivi até aos meus dez anos na chamada "Quintas das Barrocas". Deste lugar tenho as melhores recordações da minha infância.
A "Quita das Barrocas" ou simplesmente as "Barrocas" como era conhecida, era um anfiteatro natural onde o meu avô e o António Teles mostravam o seu dom enquanto ortelões.
As "Barrocas" eram então constituídas por uma variada fauna e flora, mas deixem-me descrever uma situação da qual nunca mais me irei esquecer e que diz respeito a um animal que abundava nas "Barrocas"; a cobra.
Certa tarde (ainda era muito criança) vinha com a minha família a subir o "carreiro" que fazia a ligação da minha casa à rua principal, quando o meu pai avistou uma pequena cobra castanha enrolada exactamente no prego que estava cravado numa ameixoeira, para o efeito de o padeiro de manhã deixar lá pendurado o saco do pão.
O meu pai que sempre demonstrara-me uma enorme coragem a enfrentar esta espécie, não se fez rogado e depressa segurou no animal, lançou-o para o chão e em tom de brincadeira sarcástica pisou-lhe somente a ponta da cauda.
A pequena cobra que não tinha mais de palmo e meio, mostrou igualmente a sua braveza e em vez de tentar fugir desesperadamente, lançou-se à biqueira do sapato e tentava a todo o custo com os seus pequenos dentes morder, talvez para se soltar ou simplesmente porque o seu instinto assim lhe o indicava.
Abumino cobras, mas desta nunca certamente me irei esquecer.
Recentemente este pequeno animal assaltou-me novamente a memória, após ter recebido um telefonema de um camarada Dirigente do SIESI.
Perdido e já sem saber o que fazer, o camarada a que me refiro ligou-me a pedir que o sindicato interviesse pois estava no dia 20 e metade do salário ainda não tinha sido pago.
Estava desesperado. O desespero normal para quem tem 3 filhos para alimentar e uma prestação de casa por pagar e que está a acumular juros.
Fiz o que estava ao alcance do SIESI naquele momento. Enviei via fax para a empresa, um oficio que informava da ilegalidade que a direcção da empresa estava a cometer ao ter os salários em atraso, sem sequer pensar em dar uma justificação a 49 trabalhadores que haviam trabalhado o mês completo e que não viam o seu esforço recompensado. Foi ainda solicitada uma reunião para simplesmente perceber o que se estava a passar.
Então o insólito aconteceu. Tal como a pequena cobra um dos responsáveis da empresa ao ver-se com a cauda pisada, resolveu atacar de forma irracional.
Assim que chegou o fax à empresa, a primeira reacção desse mesmo responsável foi ligar para o camarada a que me referi anteriormente e acusa-lo de traição à empresa e classifica-lo de "inimigo da empresa". Foi ainda insinuado que os sindicatos é que destroem empresas.
Incrível! Como é possível que alguém esteja a dever o salário a outro e ainda o acuse de forma tão leviana.
A verdade é que não são os sindicatos nem os trabalhadores que destroem as empresas, mas sim as más gestões das mesmas, através dos patrões que esbanjam o dinheiro ganho pelos trabalhadores ou as regras do capital que ditam "o salve-se quem puder" valendo tudo para obter lucro.
É normal que a pessoa que acusou o meu camarada de inimigo, não perceba a sua angustia... o seu salário é três vezes superior ao de um mero electricista nos quadros da empresa e como tal é possível que ao dia 20 ainda tivesse dinheiro para ir à manicura ou ao cabeleireiro.
No entanto estes são os desígnios do capitalismo; atacar tudo e todos e sem qualquer respeito por nada nem ninguém, olhando somente para os seus interesses.
Tal como a pequena cobra, a empresa atacou como podia, mas não conseguiu fazer-se sentir e o único sentimento que despertou em mim foi o de indignação por ataque tão desnorteado.
No dia a seguir os trabalhadores receberam a parte do vencimento em falta, provando-se que o pagamento da retribuição estava apenas dependente de uma reorientação das prioridades.